Como cheguei a Professor
Opinião
Valpaços
Adérito Silveira - Colaborador Tribuna
Lembro tantas vezes um encontro ocasional com o Padre Borges, figura e acarinhada por todos aqueles que tiveram a felicidade de o conhecer. Eu tinha regressado há pouco de Lisboa…
A ele lhe devo a gratidão de ser professor durante parte da minha vida. Saí de Lisboa em maio de 1972 com a promessa de um emprego em Vila Real que, entretanto, não se concretizava.
Em 9 de outubro, subindo eu a Avenida Carvalho Araújo confronto-me com o padre Borges. Com o seu andar baloiçante e firme pergunta-me: “então amigo, o que fazes?” Olhando para a sua corpulenta e hercúlea figura respondo-lhe hesitante:
” Estou desempregado e aguardo que me chamem para um emprego que me foi prometido em Lisboa…” com olhar inundado de alegria interrompe-me categórico:” ouve lá, tu não andaste no Conservatório de Música?”
Respondi que sim e que tinha outras habilitações literárias…Triunfante, propõe-me: ”tu não queres ser professor de música em Vila Pouca de Aguiar?
” Incrédulo, respondi: “Eu posso ser professor?” Num ápice, o padre Borges escreve uma carta de recomendação para eu a entregar em mão ao Sr. Diretor Armando Sarmento.
Era bom demais o que acabara de ouvir. Ser professor era qualquer coisa que eu considerava como um patamar quase impossível de conseguir…esta possibilidade, senti-a como um deslumbramento porque o professor, no tempo, tinha um estatuto distinto e eloquente na sociedade. Era respeitado como padre de catedral, ou comandante de quartel, pois as pessoas declinavam-se em vénia à sua passagem.
As palavras do padre, guardo-as como jovem guarda em relicário o primeiro beijo apaixonado em noite clara de luar… Fiquei-lhe imensamente agradecido usando expressões inacabadas no calor da forte emoção.
Senti aquela manhã linda, inalando nela o hálito das plantas de modo diferente, despertando-me para o olhar de alegres aves que se desprendiam das ramagens em redobrados sons de felicidade e liberdade.
Depois da boa nova, apresso-me a avisar o meu irmão Mário para me dar boleia ao que se junta a minha irmã Eva. Num mini vermelho em largos pneus radiais, voamos a toda a mecha, roncando e fumegando o pequeno veículo bem no alto da Samardã.
Já em Vila Pouca pergunto pelo Sr. diretor Sarmento e dizem-me que àquela hora (2 da tarde…) deve estar no café Tão, na tertúlia de um bom convívio.
Entrei e indicaram-me a pessoa que avidamente fumava um cigarro. Toco-lhe ao de leve nas costas ao mesmo tempo que lhe entrego a carta imaculada e branca. Depois de a ler olha-me de sorriso aberto e diz-me: “estava mesmo à sua espera, pois ainda não tinha professor de música…” de sorriso aberto convida-me para visitar as instalações da escola. Ao entrar na sala de música sinto a sedução do prazer quando prendo o olhar nos xilofones, flautas e nos vários tipos de campainhas, tambores, clavas, guizos e guizeiras.
Cogitei para dentro:
“É aqui que vou partilhar a minha paixão pela música com os alunos…” O diretor, gesticulando-se, fala-me com entusiasmo, aproveitando eu para acariciar alguns instrumentos e outro material de trabalho como o giz, o apagador, o quadro preto pautado, as cadeiras, a luz que entra das janelas…
Cá fora, os meus irmãos esperam-me acima do edifício que dá para a estrada de Campo de Jales. Antes de me dirigir a eles, olho a natureza e vejo-a límpida, irradiante e transformadora.
A hora é de agradecimento a um Deus protetor por me ter proporcionado aquele encontro com o padre Borges.
Lá do alto vislumbro o Vale de Vila Pouca imaginando as aldeias com crianças felizes brincando e correndo…ao longe, o fumo sai dos telhados com nuvens irrequietas que fogem em várias direções.
O vale está adormecido e o gado pachorrento pasta, povoando a solidão do horizonte que o sustenta e banha.
O dia 16- segunda-feira- foi o meu primeiro dia como professor. A minha primeira turma é às oito e meia. Na sala, os alunos olham-me, serenos e expectantes Lembro-me da canção que apresentei: “Os sinos da minha aldeia, de Joel Canhão”, e o modo entusiasmante como a cantaram…
A melodia era banhada de encanto e pureza, embrulhada em ondulantes vibrações de afetividade cúmplice.
As vozes transparentes convidavam à harmonia coletiva. Não tenho dúvidas: aquela 1ª aula foi uma lição de alegria e de vida, o corolário de muitas conquistas pela música.
Em tantas instituições que lecionei, os cinco anos em Vila Pouca de Aguiar foram os melhores da minha carreira porque a boa relação com os colegas e a educação esmerada dos alunos, iluminaram o meu sentido de vida, empurrando-me para a raiz da liberdade assente nos pilares do amor, da compreensão e da tolerância para todos sem exceção.
Durante a minha vida pautei-me por esses princípios. Consciencializo que valeu a pena a devoção pelo ensino visando o aluno no seu constante crescimento e transformação. Ser professor é ter nas mãos o mundo de amanhã. É acreditar, sem nunca esmorecer que esta nobre missão só é válida quando colocada ao serviço das comunidades em qualquer nicho ou lugar do mundo…
Ao padre Borges, o meu eterno obrigado. Aquele encontro, não terá sido fortuito. Aconteceu na elevação de um sopro arrastado por uma luz que ainda hoje a procuro… E em cada outono, sinto-a mais viva e mais perto porque ela deve andar por aí… ser professor é duro, difícil mas absolutamente necessário…
Educar pela música é o mesmo que dimensionar a beleza de um jardim enfatizado por uma flor que se quer abrir para o mundo…
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