2022/04/08
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Martins Domingues - Colaborador Tribuna - 08-04-2022 Mulheres da minha aldeia... Jorge Braz terá dito aos seus jogadores que era importante, para a conquista do bicampeonato europeu de futsal, "sentir o que vem de dentro de nós". E foi esta simples frase, mas plena de significado, deste Transmontano, que serviu de pretexto para esta reflexão sobre um grupo de mulheres da minha aldeia -Lampaça- que aqui partilho convosco. Algumas destas mulheres, no auge da sua juventude, emigraram, e cedo aprenderam a viver longe da família; cedo tiveram filhos e cedo perceberam que, para terem sucesso, necessitavam de relações sociais gratificantes e de sentir o que de mais profundo lhes ia na alma. É este sentir profundo que sai de dentro de cada um que leva estas mulheres a um envolvimento na comunidade que a transforma num espaço social onde o convívio humano tem um valor incalculável. Não é um grupo grande, porque já não há muitas mulheres na minha aldeia. Porém, espero que não sejam as últimas, caso contrário, o futuro ficaria muito comprometido. Quero acreditar que a maioria absoluta do PS de António Costa e a quantidade enorme de dinheiro para as regiões mais pobres que anda por aí, do Programa de Recuperação e Resiliência, se constituirão como uma solução para resolver esta tragédia demográfica. O futuro nos dirá. Mas, futuro é o que podemos ver nas mais simples ações destas mulheres porque, sem medos ou receios, abraçaram todas as causas deste mundo: ajudaram pessoas durante esta pandemia; auxiliaram os que mais necessitavam numa simples compra de medicamentos; deram alento a quem estava mais isolado; fizeram companhia e prestaram solidariedade a quem estava mais necessitado; deram valor ao tempo de todos os sorrisos e abraços. Elas sabem que não inventaram a roda, pois a solidariedade e a ajuda sempre foram uma realidade desta comunidade. Mas, num tempo de pandemia, de fake news, de negacionismos e de incertezas foi muito importante a partilha de valores comuns que geram laços sociais significativos. Estas mulheres, como todos nós, são feitas de carne e osso, mas nunca se cansam, nunca ficam tristes, não envelhecem e, aparentemente, nunca se reformaram, recusando-se a pertencer a essa multidão de idosos que vive, neste país, uma triste velhice. Talvez por isso combatam o desalento com um brilho nos olhos inigualável, de onde brotam também a alegria e a sagacidade que as torna únicas ou talvez parecidas com muitas outras que, noutros lugares, ainda dão vida e esperança a quem habita no espaço rural. Quem tem uma vida assim - cheia de ação para o bem comum - não pode deixar de participar na política local e nacional. E assim é! Prova disso é a facilidade com que identificam os problemas da sua aldeia e conseguem ter voz junto da autarquia de Valpaços que lhes resolve esses constrangimentos. Paralelamente, convirá dizer que esta energia que canalizam para a resolução de problemas também a mobilizam para a dinamização de festividades, envolvendo-se de corpo e alma, como aconteceu na semana passada, participando na organização do almoço da festa do dia 6 de fevereiro, que foi uma decisão da comissão de festas em cima da hora, dadas as restrições sanitárias em vigor. Mas depressa estas mulheres puseram de pé a ementa para mais de cinquenta pessoas, onde não faltaram bolos, queijos e as alheiras assadas que compuseram as entradas para, de seguida, ser servido, no centro paroquial, cabrito e leitão assado no forno comunitário, aos quais se juntou um arroz seco que, em muitos restaurantes, seria melhor do que o cabrito assado. Estas mulheres, perante desafios da comunidade, não desanimam, pelo contrário, contagiam todos para a ação. Pois, como refere Saint-Exupéry "amar não é olhar um para o outro; é olhar juntos na mesma direção". Colaborador Tribuna - 17-12-2021 Revisitar a festa de Santa Rita Ainda o verão, estação de excelência das romarias e das festas populares portuguesas, vinha longe e já o governo e, bem, pela voz de António Costa, as proibia devido ao vírus da SARS-CoV-2. Não há aldeia ou lugar que não tenha a sua festa popular, nem que seja para reforçar o sentido de pertença à própria comunidade ou para ritualizar os tempos mais agradáveis do passado. E, se há lugar a momentos agradáveis, é no decurso de qualquer festa popular e estes ficam na nossa memória desde a nossa meninice, dando sentido a muitos dos nossos comportamentos futuros, tanto da esfera religiosa, como da esfera social e cultural. Se calhar, o leitor desta crónica já elegeu como favorita uma festa popular ou uma romaria que, pelas suas tradições ou pela sua história religiosa, lhe proporcionou momentos agradáveis e inesquecíveis. Para mim, a festa em honra de Santa Rita, que se realiza no segundo domingo de outubro, nas Ermidas, na freguesia de Bouçoais do concelho de Valpaços, é a minha eleita, porque é aquela que mais preenche o meu imaginário, desde a minha infância. Hoje, a maioria das pessoas chega à festa de Santa Rita de carro. Mas, nos finais dos anos da década de 60, do século passado, para chegar à festa, percorria a pé pela estrada nacional 103, tal como dezenas de outras crianças e suas famílias, os três quilómetros que separam a minha aldeia - Lampaça - do pequeno povoado das Ermidas. Esta caminhada ainda hoje a podemos observar aos domingos à tarde, como que a ritualizar um tempo cheio de crenças, de emoções e de esperança numa vida melhor. Quando se chegava ao espaço que envolve a capelinha de Santa Rita, a primeira coisa que chamava a minha atenção era a mesma estar rodeada por uma multiplicidade de calços murados a pedra contendo cada um duas ou três oliveiras. Estas pareciam estar ali reservadas há milhares de anos para que cada família pudesse prender num dos seus ramos a burra ou o cavalo que tinha transportado a merenda que havia de ser saboreada logo que terminasse a procissão. Escolher o calço e a oliveira era uma tarefa que cabia à minha mãe, porque o meu pai, não sendo habitante das Ermidas, desempenhava, desde o amanhecer, as funções de Comissário da Festa em honra de Santa Rita. A participação, na Comissão de Festas, de habitantes das aldeias que fazem parte, tal como as Ermidas, da freguesia de Bouçoais é, e bem, uma tradição que ainda hoje se mantém. A parte religiosa que se desenrolava dentro e à volta da capelinha era dum silêncio inesquecível, só quebrado durante a missa pelo discurso de ritual e retórica feito pelo padre convidado que nunca se esquecia de transpor para aquele lugar tão acolhedor “retalhos” da vida de Santa Rita que enchiam de amor e de fé os corações daqueles que o escutavam. Após a missa seguia-se, tal como hoje, a procissão com o andor da Santa Rita coberto de notas, dos mais diversos valores, testemunhando a fé daqueles momentos difíceis da vida de muitas pessoas que, num misto de desespero e de esperança, se «agarraram» à Santa Rita «advogada das causas perdidas». Acabada a procissão, todas as famílias se dirigiam para a sombra das oliveiras para darem início à merenda que tinha sido feita no dia anterior ou de madrugada e não podia faltar a galinha assada, criada ao ar livre com os produtos da terra, um bom vinho e alguns bolos de sobremesa, feitos pelas nossas mães. Mas esta tradição há muito que está a ser substituída pelas barracas de frango assado. Os sabores não são os mesmos e os da galinha de outrora só os encontramos na nossa memória que, fielmente, os guarda. Podemos sempre culpar a Modernidade por ter contribuído para o desaparecimento destes sabores que faziam parte da merenda, no dia da festa de Santa Rita, que antes era tão comum encontrá-los à mesa de qualquer família do nosso espaço rural. Porém, a Modernidade, principalmente desde o início do século XIX, nunca deixou de influenciar o nosso estilo de vida e o modo como olhamos o mundo, nem alterou os sistemas de crenças e de fé, que se mantêm muito presentes nas tradições seculares da festa de Santa Rita, continuando a ser procurada por milhares de pessoas. Martins Domingues - Colaborador Tribuna - 08-10-2021 Só valorizamos uma coisa quando avaliamos o valor da sua perda Na minha aldeia, ninguém falava em solidão ou necessidade de ter “dois dedos de conversa” com o outro até ao dia seguinte do encerramento do café “Camionista» que, durante várias décadas, se manteve aberto, dia após dia. Desde aí, as pessoas andam mais tristonhas e aborrecidas consigo próprias. Só encontramos um paralelo com este estado psicológico quando a Escola fechou na década de 90, do século passado. Falei com algumas pessoas e percebi que têm café em casa e continuam a bebê-lo duas ou três vezes durante o dia, tal como faziam quando frequentavam o café. Mas, falta-lhes o mais importante - o convívio com as outras pessoas. O “outro” ganhou aqui importância e relevo não fosse ele o elemento mais importante e central que preenche e dá sentido às nossas vidas. E, valha a verdade, é assim em qualquer lugar do mundo. Mas nós só valorizamos uma coisa, neste caso concreto - “dois dedos de conversa” com o outro - quando avaliamos o valor da sua perda. Há um bom par de anos que eu vou à minha aldeia com alguma regularidade, e tomar um café tirado pela Matilde tinha um sabor muito especial, naquele espaço a que ela dava muita vida e tornava muito acolhedor. Mas, ir ao café também era muito mais do que tomar um café porque ali, como todos dizem, era o lugar de encontro com o “outro”, fosse ele um familiar ou um amigo. O café da Matilde e do João, na aldeia de Lampaça, era uma sala de visitas onde todos, salvo raras exceções, sabiam estar conferindo-lhe um estatuto social e cultural que era uma mais valia na vida desta comunidade, mas, por razões pessoais, foram obrigados a encerrá-lo. Numa conversa com a Matilde (por sinal minha prima) deu para compreender que para ela os clientes estavam em primeiro lugar e, por Isso, nunca tirou férias ou o café algum dia ficou fechado. E o lado que a puxava para estar ao dispor dos clientes não lhe permitiu gozar a vida, sentindo que agora podia ser demasiado tarde. Nestes negócios familiares, normalmente, não há férias porque a época alta coincide com as férias de verão e depois as pessoas perdem a vontade e a motivação de ir de férias seja para onde for. No futuro, pode abrir outro café, possibilidade que ninguém vislumbra, mas já não será a mesma coisa, porque a Tila (assim conhecida por todos) e o João, pela sua idoneidade, construíram um forte elo de ligação, de afetividade e de amizade com todos aqueles que se cruzaram com eles e que é muito difícil de replicar. Por norma, numa aldeia não seria muito expectável constatarmos a solidão. Mas, a sociedade muda constantemente, mesmo nas sociedades mais rurais, pelo que os fenómenos de solidão, que estariam mais associados ao modo de vida das cidades, estão hoje também muito associados ao modo de vida duma aldeia, porque as diferenças entre eles esbateram-se. Hoje, quase todas as pessoas na minha aldeia têm telemóvel, acesso ao Facebook e carro próprio, podendo deslocar-se com facilidade para qualquer lugar. Isto poderia ser suficiente para combater a solidão e o isolamento. Mas, superar ou substituir um tempo tão duradouro de prazer e de lazer, que todos passavam diariamente no café, por outra coisa qualquer, não é assim tão coisa pouca. Também as atividades que se faziam com a ajuda da comunidade são, há muito tempo, raras para não dizer que desapareceram. E, era no decorrer dessas atividades que as pessoas conversavam sobre as coisas mais importantes e as mais triviais, sendo que estas últimas eram e continuam a ser muito importantes para a saúde mental das pessoas. Talvez um dia, mais próximo do que eu hoje imagino, possa estar aqui a escrever que as pessoas da minha aldeia, para combater a solidão, apenas têm de frequentar o museu biblioteca, construído pela autarquia de Valpaços, ler um livro, tomar um café e, pelo meio, “dar dois dedos de conversa” com o outro.